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Nos dias atuais, o cenário é marcado por eventos que suscitam reflexões que extrapolem o óbvio. Recentemente, um acontecimento no Rio de Janeiro chamou a atenção: um evento direcionado a mulheres evangélicas solteiras, prometendo-lhes a fórmula para encontrar o marido dos sonhos. Embora essa iniciativa possa parecer inofensiva à primeira vista, uma análise mais aprofundada revela um fenômeno preocupante. Neste texto, abordo como, muitas vezes, cria-se a doença para vender o remédio a mulheres em sofrimento que estão em busca de um casamento, aprisionando-as em lógicas abusivas de poder. A partir dessa análise, examinaremos como essa estratégia não se limita à religião, mas se estende a muitos aspectos da sociedade moderna, deixando suas vítimas em um estado de perpetua busca por uma solução que, muitas vezes, se revela inalcançável.

A lógica do evento em questão não é exclusiva da religião. No entanto, é na esfera evangélica que ocorre um ciclo peculiar onde são criadas necessidades e carências para, em paralelo, serem ofertadas as soluções. Por isso, o encontro do Rio serve ao propósito de um ótimo exemplo para ilustrar como a própria religião cria e estimula problemas, faltas e carências, para depois se refestelar na venda de soluções. Com isso, instala-se um mercado milionário, onde os fiéis seguidores estão fadados a consumir e pagar exorbitâncias necessárias para se livrar do mal imposto. No entanto, o fato é que a maioria esmagadora jamais alcançará aquilo que está sendo vendido. Afinal, a vida não é simétrica e ela não cabe em uma receita de bolo. Embora seja isso que as pessoas buscam, dentro e fora da religião.

Cria-se a doença para vender o remédio a mulheres em sofrimento
Mulheres em sofrimento: evangélicas pagam quase R$3 mil por palestras sobre como encontrar um marido. Foto: Eduardo Anizelli

Para vender o remédio, cria-se a necessidade

A questão do casamento na perspectiva religiosa é uma forte engrenagem. Ela funciona mais ou menos assim: primeiro cria-se a lógica, a partir da própria interpretação da bíblia. Dentre elas, que a maior virtude de uma mulher é encontrar um homem para si, de modo a estabelecer um casamento. Em seguida, surgem os cultos de poder, congressos e experiências de imersão, onde, como no evento do Rio, promete-se a fórmula para a pessoa superar e vencer o mal que eles chamam de “solteirice“. Entre os fiéis, esse argumento é tão forte que, evidentemente, atrai um contingente muito grande de pessoas. Assim, diante de um universo tão amplo, é natural que, estatisticamente, um ou outro dentro daquele grupo consiga alcançar a solução que está sendo prometida, mesmo que sob influências de outras variáveis. 

Seja como for, os poucos que alcançam o sucesso, passam a ser usados como “testemunhas”. Isto é, aqueles que, por qualquer razão, atingiram o lugar tão desejado, dão seus emotivos depoimentos, associando como aquele evento, culto ou método realmente funciona. A própria idealizadora do evento assume esse papel. Ao partilhar sua história de superação, ela afirma que também esperou muito por seu marido. Ela relata que se casou pela primeira vez aos 19 anos. Porém, a relação acabou seis meses depois, desenvolvendo depressão e bulimia. Desde então, diz ter enfrentado um longo processo de batalhas e espera. Porém, como o “caminho certo”, conseguiu o seu marido-troféu, exibido no encontro e nas redes sociais, um ideal de consumo e sucesso a ser perseguido pelas demais.

O apelo emocional para fidelizar mulheres em sofrimento

O apelo emocional dos “testemunhos”, sem dúvidas, cumpre a função de demonstrar às mulheres que participaram do evento que se uma conseguiu, todas também conseguirão”. Ou seja, a mesma lógica usada pelos pastores das igrejas da prosperidade que ostentam poder e riqueza, para incutir nos fiéis a ideia de que “se você continuar alí naquela igreja, participando e contribuindo, um dia, sabe-se lá qual, você ainda vai se tornar tão próspero e poderoso como ele.

Tal conduta, retroalimenta-se a continuidade desse negócio ilusório e altamente lucrativo. Afinal, é notório que pouquíssimas mulheres em sofrimento submetidas a essas experiências infundadas alcançarão o sucesso prometido. A maioria, evidentemente, passará o resto da vida apenas desejando, perseguindo e, claro, pagando. Tudo isso sob a crença de um dia alcançarem aquele ideal. Contudo, é muito provável que no final das contas a quase totalidade não consigam algo e a culpa ainda seja desses desafortunados, porque pecaram ou fizeram alguma coisa errada.

Por que as mulheres lotam esse tipo de evento?

Além de não pouparem esforços e recursos, muitas mulheres competem por um lugar em eventos semelhantes ao ocorrido no Rio de Janeiro. Sejam eles evangélicos ou não. Isso ocorre porque foram impregnadas com a crença de que a maior virtude, sua principal razão de existir na vida é se tornar esposa de um homem. Isso acontece às custas do sacrifício de outras perspectivas, como a vida profissional, social e até mesmo o bem-estar pessoal.

Em suma, na ótica da religião, nada tem valor se uma mulher não consegue encontrar um marido. A pressão é exacerbada pela ideia de que a mulher deve ser a principal responsável por manter o casamento a qualquer custo. Isso leva muitas a estarem dispostas a pagar qualquer preço para participar de eventos que lhes ofereçam a esperança de alcançar seu propósito de vida. É, portanto, mais um exemplo do sedutor “Canto da Sereia” que engana mulheres em busca de alívio para seu sofrimento. Com efeito, aprisiona a maioria delas em lógicas abusivas de poder, muitas vezes resultando em relacionamentos tóxicos.

Elídio Almeida

Psicólogo em Salvador, formado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e especializado em Terapia de Casal e Relacionamentos (CRP). Possui também pós-graduação em Psicologia Clínica pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Dedica-se à prática clínica, oferecendo acompanhamento terapêutico a casais, famílias e atendimento individual para adultos. Além disso, ministra cursos e palestras na área.

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