Inicialmente quero aqui me solidarizar às famílias das vítimas e a todos que se sensibilizaram com esse episódio extremamente triste em nosso país.
Passados alguns dias do massacre que chocou o país, onde o jovem Wellington Oliveira, de 24 anos, matou 12 adolescentes e em seguida se suicidou, no bairro do Realengo-RJ, toda a imprensa brasileira, com repercussão internacional dada a gravidade do caso, ainda discute a tragédia.
Tragédia inconsolável
Na mesma direção, políticos e autoridades aproveitam o episódio para criar palco falando de segurança pública, desarmamento e outras questões que até podem ser paliativas, mas não resolve efetivamente a questão.
Em acontecimentos como esse, é muito comum em nossa cultura discutirmos muito o ocorrido, procedermos a investigação profunda do passado do agressor e das vítimas, além de criarmos propostas para que o evento não se repita. Todavia, embora motivadas pelo mesmo episódio, em muitos momentos todas essas informações são tratadas de forma separada e isso pode não contribuir efetivamente para que outras tragédias sejam evitadas no futuro.
Por isso, devemos sempre estar atentos ao ocorrido no passado, identificar quais foram consequências desse passado e como tudo isso (junto) pode trazer ensinamentos e dicas para o futuro.
Perfil e dados do massácre.
Até então, de tudo que já foi veiculado na imprensa sobre a tragédia do Realengo, temos condições para tentar compreender os antecedentes que desencadearam o massacre:
Ao que tudo indica, Wellington era alvo de bullying (fonte) e isso, somado a todo o contexto, pode ter culminado na tragédia.
Wellington estudou na escola em que houve o massacre, que ficava a apenas 300 metros de sua casa, o que sugere que ele pode ter escolhido o local como alvo apenas por ser conhecida e acessível (morava perto, ex-aluno).
A suposta carta deixada por ele revela um discurso desconexo, próprio de comportamentos psicóticos. Não fica claro, contudo, desde quando eles estavam instalados no repertório de Wellington: se na infância, ou oriundos a partir de algum episódio recente. E mesmo os depoimentos de quem o conhecia não são suficientes para fazer uma afirmação mais contundente.
Wellington morava só, não tinha amigos, passava a maior parte do tempo na internet, sentia falta da mãe morta e tinha apenas uma irmã para conversar, raramente. A solidão crônica pode induzir quadros de psicose, ou agravá-los. Aliás, pediu para ser enterrado junto com a mãe, o que sugere saudades e desejo de proteção.
Ele disse, antes do massacre, para vizinhos que ficaria famoso. Isso revela um desejo de ser reconhecido, o que sugere que ele quis imitar outros atiradores suicídas (veja a similaridade que tem com o caso do Realengo com Columbine, por exemplo). Na falta de amigos e modelos de bons comportamentos, ele escolheu ter essas “celebridades” para imitar.
O crime foi premeditado e avisado (para vizinhos que não entenderam), bem como executado com calma e frieza. Ele inclusive treinou o uso de armas de fogos para garantir matar o maior número possível de crianças. O fato de ter sido tão frio e calculado exclui a possibilidade de um “impulso de última hora” estar na raiz do caso. Segundo a irmã, ele era obcecado por terrorismo, homens-bomba e outros fanáticos religiosos suicidas. Wellington revela, em sua carta de suicídio, uma certa crença religiosa de que é puro. (Ele morreu virgem).
Suicídio e bullying
Já foi teorizado que ele não queria punir as crianças, mas salvá-las do pecado. Isso explicaria porque ele pediu desculpas na carta de suicídio por matá-las (com tiros nas testas, para terem mortes rápidas). Se as estivesse punindo por algo, não pediria desculpas. Talvez Wellington acreditasse que as estivesse “salvando-as”.
O fato dele ter matado na maioria meninas, segundo alguns especialistas consultados, também parece sugerir um desejo de “salvar a pureza”. Wellington matou apenas crianças. Poupou professores e outros adultos. Ele pareceu matar apenas pessoas com quem se identificava (jovens que estudaram na mesma escola que ele) e em seguida se matar, aumentando a identificação com elas.
Como entender tudo isso?
Ao matar pessoas com que ele se identifica, talvez estivesse buscando algo sobre si mesmo. Talvez quisesse, em seu delírio homicida, poupar aquelas crianças da vida amarga que teve.
Observe o quanto podemos extrair do histórico de Wellington que nos permite não somente tentar entender o acontecido, mas principalmente agir para que outros não venham a se repetir.
Não basta dar publicidade ao caso, tão pouco criar leis que proíbam vendas de armas de fogo, implantar UPPs ou rotular as pessoas como loucas, neuróticas, psicóticas, perversas, criminosas ou assassinas.
Precisamos pensar que pessoas como Wellington são produtos/vítimas de um contexto, de uma sociedade coercitiva que julga, humilha, onde as pessoas pouco se importam umas como as outras, uma sociedade que exclui; e com tantos outros controles coercitivos criam pessoas capazes de tamanha barbárie.
Teóricos como Skinner, Sidman e tantos outros já denunciaram as consequências de negligenciar os efeitos da coerção que tanto impera hoje no mundo. Enquanto estes alertas não forem valorizados em nossa sociedade, nossos políticos pensarem apenas em fazer palco em cima de catástrofes como essa, as autoridades e todos nós não agirmos diretamente na raiz do problema, vez por outra catástrofes como esta irão acontecer.
Quase caí pra trás quando vi um profissional analisar a carta de Wellington e afirmar em rede nacional que o assassino tinha traços psicóticos e que por isso fez o que fez. A repórter terminou a matéria dizendo: “Como vimos aí, o assassino era psicótico”. E isso soou como se Wellington fosse exclusivamente culpado pelo ocorrido, toda a sociedade/contexto fossem isentos na questão e o fato de saber que ele era psicótico fosse suficiente para a compreensão do ocorrido. Não. Veja que dessa forma, se outra tragédia voltar a acontecer, muito provavelmente as pessoas vão se apegar a essa referência para tentar justificar o ato: “deve ser mais um psicótico”, quando na verdade deveriam se preocupar em saber como esse “psicótico” foi construído e o que o levou a agir como agiu. Sabendo esses antecedentes podemos agir de forma mais eficaz para evitar outras ocorrências tratando o mal pela raíz.
Se Wellington foi neurótico, psicótico ou perverso, isso é o que menos importa neste momento. O que precisamos tentar entender é como esse neurótico, psicótico ou perverso foi construído e que lições podemos tirar disso para que outros não venham a surgir também.
Todos nós temos que construir contextos que possibilitem o surgimento de comportamentos incompatíveis com o que aconteceu. O ocorrido no bairro do Realengo foi um dos produtos da deficiência da sociedade em conferir aos cidadãos qualidade de vida biopsicosocial (uso esse rótulo como um atalho para me referir a todos os tipos de influência que determinam o comportamento humano).
Que fique aqui bem claro que não estou em defesa do assassino, porém culpabilizá-lo exclusivamente pelo que aconteceu (como tem feito autoridades, políticos e alguns estudiosos) chamando Wellington de “animal” e “monstro” parece ser muito cômodo, quando o que deveria ser questionado é como tal “animal” e “monstro” foi constituído e quem efetivamente são os responsáveis por esta criação e as consequências que ela traz à sociedade.
Fica o alerta
Que a tragédia do Realengo na semana passada sirva de alerta para criarmos propostas, estratégias e ações para que outras não se repitam. E que todas as informações sejam relacionadas e tratadas em conjunto para que o ocorrido não volte a se repetir. E para isso não ficar apenas na fantasia ou na teoria, cada um de nós precisamos agir em benefício de todos. E uma das minhas preocupações neste momento é o bem estar das testemunhas dessa tragédia e de tantos outros que vivenciaram situações de traumas. Já que temos informações sobre os produtos nefastos da coerção, cabe a nós a divulgação das mesmas da forma mais popular possível, com nossos amigos, parentes, colegas de trabalho…
Em breve um post especial sobre estresse pós traumático.