É quase impossível andar pelas ruas da cidade e não ver pelo menos um carro que tenha colado em sua traseira adesivos com a representação de uma família. Estes adesivos são chamados de “Família Feliz” e são compostos por bonequinhos e figuras de animais que teoricamente representam a família do condutor. Pai, mãe, filhos, cachorro, papagaio: os adesivos viraram moda e uma das justificativas para isso seria o apelo sentimental atrelado a este comportamento, em função da família parecer ocupar um lugar de orgulho para a maioria das pessoas.
O que mais pode haver por trás deste comportamento?
Pesquisas mostram que o brasileiro valoriza muito o PERTENCER a uma família. Podemos verificar isso nas mais variadas situações do cotidiano, onde as pessoas evocam para si referências desta instituição tão poderosa; fruto da história sociocultural e religiosa dos povos.
“Vou chamar minha mãe ou falar com meu pai”, diria uma criança que se sente insegura; “Sabe com quem você está falando?”, pode dizer um jovem arrogante que acredita ter na família o respaldo para suas ações; “Pode me contratar sem medos, sou um homem de família”, diria um candidato a uma vaga de emprego; “Em defesa da família”, adoram dizer os políticos; ou “Vou levar você para conhecer minha família”, poderia ser um argumento fatal para um rapaz que queria impressionar a namorada que esteja duvidando da seriedade e compromisso na relação.
Nesse sentido, família parece ser o bem mais precioso que existe em nossa sociedade, pois, a relação interpessoal, o título e a inserção nesse contexto parece dizer muito sobre seus membros, fazendo surgir daí a necessidade de externar isso das mais variadas formas, dentre elas os famosos adesivos.
Claro que a nova moda pode representar a necessidade das pessoas de valorizarem seus vínculos familiares. Ainda mais nos tempos atuais em que as pessoas, principalmente por conta do trabalho, passam cada vez menos tempo em casa e isso pode provocar uma grande culpa que tende encontrar compensação com a exposição dos adesivos: “Estou distante, mas estamos unidos”. É como se o adesivo fosse uma forma de redimir um pouco essa culpa.
Todavia, podemos imaginar que nem todas as pessoas colocam os adesivos realmente conscientes da importância do papel familiar. Muitos compram porque é moda, outros compram porque é bonito e há também aqueles que colem os adesivos porque queria uma família feliz, mas não tem.
Dados do último censo do IBGE, revelam que 7 milhões de lares brasileiros possuem apenas um único ocupante, número equivalente a 12,2% do total de domicílios do país. A taxa por aqui é maior que países como China e a Índia são os chamados lares solitários. Informações como esta pode ser a pontinha de um iceberg gigante que está submerso em nossa sociedade e as tais famílias retratadas nos inúmeros adesivos colados na traseira dos carros podem de fato não existir ou existir minimamente na fantasia ou aparências que as pessoas procuram sustentar em nome de um status meramente social que pouco reflete a realidade das famílias.
Digo isso não pela quantidade ou a combinação de membros que pode constituir uma família na atualidade: (pai, mãe e filhos); (mãe e filho); (pai e filho); (mãe e mãe); (mãe, mãe e filho); (pai e pai); (pai, pai e filha), (mãe, avó, neto, cachorro), enfim… mas pela falta de entendimento, respeito, companheirismo, a tal felicidade e harmonia familiar que muitas vezes aparece apenas na colagem, totalmente diferente da realidade.
É como se histórias e enredos de dramas, sofrimentos, angústias e infelicidade fossem minimizadas com a demonstração de uma família perfeita.
O que uma pessoa ganha expondo sua família dessa forma?
Ademais, atrelada a esta questão da aparência de perfeição e felicidade, as pessoas têm demonstrado um comportamento preocupante: tornar público informações íntimas que poderiam ser restritas a vida privada.
Em função disso, vivemos o espetáculo da midiatização da intimidade, como se as relações (ou a própria vida) só fossem válidas se expostas ao público. Em comportamentos de modas virais como a dos adesivos das famílias felizes existe um exibicionismo exacerbado dos tempos atuais.
Os adesivos seriam uma consequência ou equivalência do movimento já visto nas redes sociais, onde as pessoas colocam em suas páginas, em tempo real, o que estão fazendo e o carro é apenas mais uma maneira de mostrar para o mundo algo que deveria ser pessoal. Considero isso sintomático, preocupante e que pode trazer implicações extremamente graves.
Precisamos nos questionar sobre a razão e principalmente as consequências disso tudo.
Será que isso também não traz de risco à segurança familiar?
Será que pessoas má intencionadas podem se basear nos adesivos para planejar assaltos e outros golpes?
A discussão em torno da exposição excessiva da família é inevitável. A estampa que aparentemente é inofensiva e em muitos casos até divertida, pode dar subsídio aos bandidos, já que mostra a quantidade de pessoas da família, a idade, características e até mesmo a situação financeira, haja vista que algumas pessoas demonstram nas colagens suas profissões, faixa etária dos filhos, entre outros aspectos.
Recentemente, tive notícia de um desses golpes que tentam, por telefone, simular um sequestro. Nesse caso trágico, os adesivos ajudaram o bandido a chantagear a família, pois quem tentou aplicar o golpe já sabia que a criança era filha única e possuía uma tartaruga de estimação, o que ajudou a impactar os pais.
Família Feliz?
Como vimos, a moda dos adesivos “família feliz” é bastante complexa, ampla e necessita de uma reflexão com vistas a pensarmos em nossos modelos de família e se realmente demonstramos o que vivemos ou tudo não passa de um encenação.
Contudo, talvez essa moda seja, mesmo que inconscientemente, um apelo para que a família seja mais valorizada. Ou, quem sabe, uma crítica ao nosso modo de vida atual, em que a família é apenas uma boa justificativa para nossas escolhas. Ou ainda, os adesivos podem estar tentando dizer que essa “família feliz” é um sonho idealizado da nossa sociedade, em nada parecida com a “família real” que conhecemos na intimidade do nosso lar, e que muitas vezes fazemos de tudo para ocultar.
Olá Elídio;
Achei muito legal sua forma de abordar um coisa que se tornou muito comum ultimamente;
Acho que sem dúvida precisamos questionar a real necessidade de expor uma família, seja em forma de um adesivo no carro, e sua verdadeira relação com a família “real”; Como disse, coisas que são de ordem privada, se tornando pública; Ainda mais nessa fase, que o conceito de família é questionado e restruturado.
Acho que isso gera boas dicurssões sobre a temática…
Parabéns pela percepção!
Pra mim, na maioria das vezes, as pessoas que colocam esses adesivos não param para pensar no significado deles, seja afetivo ou outra coisa. É apenas o apelo da moda, mesmo.
Olá Zazo!
Infelizmente as pessoas não se perguntam o por que estão fazendo certas coisas e menos ainda pensam nas consequências disso. Obrigado pelo comentário. Um abraço!
Olá Kelli!
Obrigado pela comentário. Pois, concordo que o assunto ainda deve ser bastante discutido e muitas pessoas estão envolvidas, muitas vezes se expondo e não percebem que as consequências podem não ser favoráveis! Um abraço.
Lembra da frase de Tolstoi que te fale: “Todas as famílias felizes são parecidas entre si. As infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”.
Olá Ailson!
Lembro sim. Verdade,todas parecidas, mas cada uma a sua maneira!
Um abraço.