A complexa relação entre filhos e um casamento em crise é um tema bastante delicado. Justamente por isso, esse dilema é frequentemente explorado nos mais diferentes contextos, desde telenovelas populares até eventos da vida real. Novelas como “Senhora do Destino”, com a icônica personagem Nazaré Tedesco, bem como o recente sequestro de um recém nascido, demonstram a relevância de questionar: os filhos podem salvar um casamento falido? Este texto pretende analisar esse dilema.
O sequestro do Bebê
Na semana passada, o Brasil foi impactado pelo sequestro do pequeno Ravi, ocorrido em uma das maiores maternidades do Rio de Janeiro. Após seis angustiantes horas de desaparecimento, a criança foi encontrada na casa de uma jovem de 19 anos. Surpreendentemente, a sequestradora alegou que seu ato visava encobrir uma falsa gravidez para manter seu relacionamento amoroso. Esse evento extremo destaca uma questão mais ampla: a lógica pela qual as pessoas utilizam os filhos como meio para salvar um casamento em crise ou em falência.
Filhos podem salvar um casamento falido?
Evidentemente há casos em que a presença dos filhos mantém, ainda que temporariamente, um casal unido. Contudo, essa situação está longe de ser um arranjo adequado para a crise que afeta muitos relacionamentos amorosos e casamentos.
Uma pesquisa da Irwin Mitchell revela que, surpreendentemente, um em cada quatro casais permanece junto “pelo bem-estar dos filhos”. Em teoria, essa decisão visa proteger as crianças do trauma da separação dos pais. Contudo, tentar salvar um casamento com base nesse argumento pode ser tão prejudicial quanto a própria separação. Afinal, toda criança exposta a um ambiente de conflitos e atritos provocados pela crise conjugal dos pais, convive com toda sorte de tensão presente nesse contexto familiar. Isso, evidentemente, contraria a suposta intenção dos pais de preservar o bem-estar dos filhos. Além disso, alguns pais utilizam o argumento de “não traumatizar os filhos” como uma barganha emocional para manter o casamento. Ou seja, embora falem em defesa dos filhos, estão, na verdade, priorizando seus próprios interesses, a famosa chantagem emocional.
A falsa lógica “um filho pode salvar um casamento”
A sociedade, muitas vezes, encara a separação como algo exclusivamente prejudicial para os filhos. A dissolução de uma família, indiscutivelmente, pode gerar transtornos emocionais nas crianças. Ainda assim, é importante reconhecer quando essa preocupação é legítima ou quando é uma estratégia para manter o relacionamento a qualquer custo. Digo isso, pelo fato de que, apesar dos problemas conjugais e da falta de vínculo afetivo, muitos homens e muitas mulheres utilizam propositalmente o argumento de “trauma para os filhos” para evitar a o fim do relacionamento. Desse modo, essas pessoas utilizam os filhos como uma espécie de moeda de troca. Ou seja, fazem tudo isso na tentativa de salvar um casamento em crise ou uma relação falida. Tal atitude é questionável e revela a completa falta de comprometimento genuíno com todos os envolvidos, em especial as crianças. Além disso, contribui para um ambiente doméstico completamente prejudicial.
Filhos repetem aquilo que aprenderam os pais
Uma pesquisa realizada pela Fundação Kovacs, na Espanha, na qual participaram 4.019 adolescentes e 7.359 pais, reafirmou um entendimento clássico da psicologia. Isto é, a conduta dos pais influencia significativamente o hábito comportamental das crianças. Por isso, é essencial refletir sobre o tipo de relacionamento que os pais estão apresentado aos filhos. Afinal, aqueles que já não se suportam e ainda assim mantém a convivência para “não traumatizar os filhos“, passam para eles uma perspectiva muito equivocada daquilo que seria casamento. Assim, o relação dos pais pode se tornar a causa de tensões, angústias e ansiedades, podendo culminar exatamente no trauma que os pais tentaram evitar. Além disso, claro, essas crianças tenderam a repetir os exemplos dos pais em seus futuros relacionamento. Portanto, sempre que alguém decide manter um relacionamento amoroso alegando o bem-estar dos filhos, mesmo que a intenção genuinamente seja essa, tal posicionamento precisa ser devidamente analisado.
Portanto, é crucial que os casais estejam atentos ao impacto que suas escolhas terão no bem-estar de todos, especialmente na formação dos filhos. A tentativa de salvar um casamento sob a alegação de “proteger os filhos”, em qualquer perspectiva, dificilmente terá um desfecho satisfatório. Assim, é fundamental buscar orientação profissional sempre que necessário para construir soluções mais adequadas ao relacionamento e evitar efeitos colaterais danosos. Nesse sentido, a Terapia de Casal pode contribuir significativamente para restaurar o relacionamento e mesmo que a separação se mostre inevitável, é essencial que os pais conduzam o processo de maneira adequada.
Em regra, não existe final feliz para casamento sustentado pelos filhos
Por fim, quero reforçar que a manutenção de qualquer relacionamento deve ser fundamentada no comprometimento e vínculo emocional genuíno. Logo, qualquer tentativa ou argumento que fuja desse escopo deve servir como alerta, como, por exemplo, a tentativa de reproduzir na vida real narrativas aprendidas e difundidas por meio das novelas, como possivelmente ocorreu no caso do sequestro do bebê. Em regra, filhos não sustentam um casamento falido, e mesmo que isso pareça funcionar ou “dê certo” por um período, os danos são inevitáveis.
2 Comments